sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A nova doutrina do engrossamento

 

Nos últimos quartéis do século XIX, o Vale do Cricaré, no Norte capixaba, fervilhava com os frequentes conflitos entre escravocratas e abolicionistas, além das batalhas dos capitães-do-mato contra os heróis quilombolas procurados por “crimes de anseios de liberdade” e “esquecidos” pela historiografia oficial e entre os políticos da capital e os dirigentes da próspera São Mateus, que tinha, no seu movimentado porto, o centro do desenvolvimento da região.

Dizia-se, à época, que “Vitória é a capital, mas quem governa é São Mateus”, em função do movimentado comércio de escravos e da grande produção de farinha de mandioca, açúcar, inhame, abóbora e outros gêneros — principais sustentáculos da economia e base alimentar da população de então, que tinha, na cidade serpenteada pelo dorminhoco rio que o gentio chamou de Kiri-Kerê, a mais importante referência.

E, desde que a Província do Espírito Santo criou a Guerrilha de São Matheus para a “apprehhensão de escravos fugidos, desertores e criminosos”, se acirraram os conflitos, não apenas nas matas próximas ao Quilombo do Morro — atual povoado de Sant`Ana, em Conceição da Barra —, mas também no parlamento e na imprensa, com os abolicionistas defendendo o fim da escravidão e apoiando as ações dos revoltosos.

Esses movimentos eram encabeçados por intelectuais, jovens advogados, poetas e jornalistas, que emparedavam o sistema escravocrata de São Mateus — um dos mais poderosos do interior do país —, desde que a escuna norte-americana Mary Smith, último navio negreiro vindo da África para o Brasil, foi apreendida na embocadura do Cricaré, em 1850, e, a partir desse fato, as famílias coroadas criaram as fazendas de reprodução.

E, nesse cenário de lutas libertárias e disputas fratricidas pelo poder, surge um intelectual combativo, persistente e destemido, que enfrentaria a velha sociedade escravocrata e se notabilizaria com posições a favor da liberdade: Graciano dos Santos Neves, nascido em Conceição da Barra, então pertencente ao território de São Mateus, em 12 de junho de 1868, de família de origem judia — contra a qual ele se insurgiu em função da compra e venda de gente —, e elegeu-se deputado federal aos 22 anos.

Os conservadores tinham-no em permanente vigilância, quando ditavam as linhas da ação política na Assembleia Provincial do Espírito Santo, e colocavam alguns deputados para combatê-lo, como o Coronel Matheus Cunha — um dos principais fazendeiros e dono de escravos —, em cuja fazenda ocorreu o crime atribuído a sua esposa, que jogou na fornalha da casa de farinha uma criança recém-nascida, filha de Constância de Angola, após a Lei do Ventre Livre, “para não atrapalhar o serviço da criadagem”.

Graciano Neves se elegeu pelo voto popular, como primeiro presidente do Estado, em 23 de maio de 1896, então com 28 anos, e, durante 1 ano e 4 meses, enfrentou a fúria das elites conservadoras e havia muito tinha enfurecido a poderosa sociedade mateense, ao publicar o jornal O Norte do Espírito Santo, em 1º de dezembro de 1889, com uma edição a tinta a ouro que anunciava a República, mas viu a nova forma de governo repetir os desmandos que combatia e os antigos grupos palacianos mudarem de lado.

Assim, quando eleito presidente do Estado, ele teve de conviver com alguns que chamava de de “cupim do palácio”, e estes eram apoiados pelas velhas oligarquias que dominavam o comércio, a política e a vida social na Província do Espírito Santo, além de estender ramificações nas principais cidades, e controlavam vários setores e, principalmente, influíam nas decisões do governo, detinham uma forte interferência no judiciário e nos negócios de então.

Com as posições políticas que tinham origem na Revolução Francesa, que estabeleciam a “liberdade de imprensa e a crítica aos governantes”, difundidas em vários discursos, manifestos e textos, Graciano Neves passou a ser perseguido pelos velhos adversários oriundos do antigo regime que haviam passado para o novo governo e, inclusive, por alguns companheiros que, no poder, não queriam colocar em prática os compromissos com a “liberdade de expressão e os fundamentos da República”, e fez um devastador discurso:

“— No Espírito Santo cultua-se uma sociedade política que serve aos poderosos com olhos de cego, ouve os reclames do povo com ouvidos de surdo e tem o faro de uma velha raposa que conhece o caminho do galinheiro”, e a cada dia se atritava com “o servilismo, a bajulação e a falta de critério” com que os jornais e os políticos da época se relacionavam com os detentores do poder, representado pelo beija-mão no Palácio Anchieta e o jornalismo de conveniência.

Aborrecido com a impossibilidade de realizar as promessas e com a forte oposição que lhe faziam os conservadores, Graciano Neves voltou a São Mateus e redigiu, em 22 de agosto de 1897, a sua renúncia ao cargo de presidente do Estado do Espírito Santo, e esta só foi aceita pelo parlamento capixaba em 23 de setembro, com a Assembleia ficando mais de 30 dias “sem saber o que fazer, enquanto alguns deputados afirmavam que o papel utilizado era “utilizado para finalidades higiênicas”.

Após a renúncia e alguns meses trabalhando na farmácia do pai, na Rua do Commércio, 14, no Porto de São Mateus, Graciano Neves foi para o Rio de Janeiro ser professor no Colégio Pedro II — depois de aprovado em concurso, tendo como companheiro Euclides da Cunha — e nunca mais voltou à capital do Estado do Espírito Santo, porém havia deixado impresso o livro Doutrina do Engrossamento, uma sátira às elites capixabas, também conhecido de “tratado de como bajular os poderosos para se manter no poder”, cuja primeira edição foi impressa em São Mateus, em 1899.

Um dos trechos do livro afirma: “A honradez, o brio, a coragem, a pertinácia no trabalho, a capacidade de abnegação e o sacrifício são manifestações humanas intimamente ligadas aos louvores da opinião pública, à influência enorme dos elogios e da aprovação do nosso semelhante, sem que tenhamos de incorrer na pecha da misantropia e do pessimismo, podemos licitamente duvidar da possibilidade de heroísmos obscuros, sem a mais remota esperança de que uma galeria venha, afinal, reconhecê-los e aplaudi-los”.

Quando de sua renúncia à presidência do Espírito Santo — depois de enfrentar inúmeras crises que quase não lhe permitiram governar e, sobretudo, não aceitar ser “dominado por deputados subordinados às oligarquias e apoiados pela imprensa que atende aos interesses dos poderosos com deslavada servidão” —, indagado sobre a possibilidade de a Assembleia não aceitar a sua renúncia, devido ao fato de o papel escolhido para redigi-la ser para “finalidades higiênicas”, teria dito:

“— Se não sabem o que fazer com o meu pedido de renúncia, então, que limpem a bunda. Às dinastias cabe hoje o papel pouco heroico, porém cômodo e meritório de entupir mecanicamente, como fardos volumosos, o caminho do poder, tão fácil de ser trilhado pelas mais medíocres personagens”, quando as oligarquias sociais, políticas e econômicas do Espírito Santo passaram a dominar a Província e, depois, o Estado, e se tornariam embriões das atuais grandes empresas.

Assim, tivemos a segunda renúncia de um chefe do executivo no Espírito Santo — o primeiro foi Afonso Cláudio —, e pelo mesmo motivo: “contrariar os interesses das poderosas famílias coroadas”, que, no final do século XIX, mostravam um indicativo de que, por muito tempo, o território capixaba seria governado conforme os interesses dos grupos econômicos, mas havia um problema: esses grupos teriam que ter no comando do Palácio Anchieta alguém que pudesse representar os seus objetivos e jamais contrariar as velhas oligarquias.

Com a impossibilidade de colocar em prática os princípios republicanos, a renúncia de Graciano Neves deveria servir de alerta ao futuro do Espírito Santo, quando quase todos os veículos de comunicação seriam cooptados por vultosas verbas públicas e se submeteriam a um governador que criaria o álibi de “Um Novo Espírito Santo”, em torno do qual outros inquilinos do Palácio Anchieta se revesariam no poder sob o comando e a proteção das grandes empresas, com o aniquilamento dos demais poderes e instituições, a omissão dos intelectuais e, sobretudo, a cumplicidade da “imprensa amiga”.

Dir-se-ia que, após 2003, enquanto alguns capixabas resistiriam ao ardil da “unanimidade bonapartista” — denunciando o fascismo, a perseguição e o engodo do falacioso “Um Novo Espírito Santo” até o seu último mandato —, muitos ainda praticam a mesma “doutrina do engrossamento”, sob os auspícios das poderosas empresas poluidoras e, atualmente, as que devastam o território capixaba com a extração de mármore e granito e, por certo, ainda merecem ler o que está escrito no atualíssimo livro ou no antigo papel higiênico utilizado pelo rebelde, lúcido e destemido Graciano Neves.

Passados 126 anos da renúncia do primeiro presidente da Província do Espírito Santo, eleito pelo voto popular, os motivos que nortearam a sua iniciativa são os mesmos que, nos dias contemporâneos, fizeram surgir uma “Nova Oligarquia”, representada pelas grandes empresas, que decidem quem vai ser o próximo inquilino do Palácio Anchieta, estabelecendo um poder autoritário, centralizador e comandado por uma “dinastia empresarial” que, recentemente, deixou de ser chamada de “Espírito Santo em Ação” para se metamorfosear nas chancelas das corporativas federações.

Repetindo o que Napoleão Bonaparte fez na Europa, no Século XVIII — combinando elementos do pensamento iluminista de Rousseau, quando nenhuma classe ou grupo poderia ter poder suficiente para ser hegemônico, deixando a cargo de um líder pragmático e suficientemente habilidoso mediar as diversas forças sociais —, foi implantado no Espírito Santo um modelo de gestão autoritária, com uma geopolítica que permite ao inquilino do Palácio Anchieta governar com todos os poderes, porém o modelo de desenvolvimento pertence às grandes empresas.

E, ao estabelecer as metas de um governo discricionário, criado a partir do diletantismo de “Um Novo Espírito Santo”, substituído por sua cópia tosca, inculta e falsificada, o atual governo do Estado retrocedeu ao ano de 1851 — época em que o bonapartismo incorporou as reivindicações do desenvolvimento industrial — e, nas duas últimas décadas, mantém a mesma parceria com as transnacionais poluidoras, mineradoras e exportadoras de commodities, que financiam os políticos, ditam os benefícios dos incentivos cruzados e, com mãos peludas, comandam os destinos do povo capixaba.

Em 1899, o destemido Graciano Neves, ao escrever e publicar, na cidade de São Mateus, o atualíssimo Doutrina do Engrossamento, alertava para o risco de os governantes tornarem-se irritados e ferozes, semelhantes ao animal a que La Fontaine se referiu em sua memorável fábula — “C’est un animal bien méchant. Quand on l’attaque, il se defend” —, antevendo o que poderia ocorrer há mais de um século, após renunciar ao cargo de presidente da Província do Espírito Santo, e acertou no prognóstico.

Antevendo os dois últimos governos do Estado do Espírito Santo, Graciano Neves deixou uma intrigante e precisa definição de quem, efetivamente, seria o inquilino do Palácio Anchieta e ou comandaria o Estado: “— Aqui persiste o estranho hábito de se fazer política com o fígado. Portanto, impor a execração moral aos adversários é uma prática tão característica quanto a leviandade, a futrica e a subserviência que reverberam incólumes pelas adjacências do Palácio do Governo”.

Graciano Neves nos legou, como principal fundamento de seu compromisso humanista, a renúncia à presidência da Província do Espírito Santo — onde resistiu por 1 ano e 4 meses no exercício do mandato, por não querer ser comandado pelas oligarquias —, e, após mais de um século, o seu livro Doutrina do Engrossamento continua necessário e imprescindível a uma melhor compreensão de nossa aventura política, pois nele há uma visionária denúncia que, infelizmente, ainda não foi devidamente entendida por muitos políticos, jornalistas e intelectuais.

Assim, nas duas últimas décadas, o Estado foi governado por insidiosos totalitários travestidos de democráticos — que tiveram do direito ao arbítrio à absolvição sem julgamento; da violação das garantias fundamentais à pose de bom-moço; do aperto do cinto até a fivela bater nas costelas dos servidores à falaciosa eficiência no ajuste fiscal; da mordaça nas instituições à dissimulação de uma mão peluda —, e, mesmo que os dois últimos inquilinos do Palácio Anchieta tenham recebido um salvo-conduto, eles devotam obediência canina às grandes empresas, das quais, quando terminam os seus reinados, eles viram CEO e ou são conduzidos por um cortejo de bajuladores, cúmplices e omissos ao céu do Senado da República.

Por: Maciel de Aguiar

Escritor das barrancas do rio que o gentio chamou de Kiri-Kerê.

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As opiniões e/ou textos publicados na coluna, são de responsabilidade do Autor.

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