DOIS DIAS DE CARNAVAL
Há coisas muito boas e diferentes nos dias atuais. Solteiros adultos, em geral os mais maduros (vamos colocar dessa forma), hoje se encontram por aplicativos de namoro sem ter que dar muita explicação a ninguém. Eles simplesmente entram no aplicativo, trocam alguns “olá”, “tudo bem?”, “está disponível?”, e se encontram em dias que estão se sentindo sozinhos ou querem uma companhia para um passeio ou para passarem o carnaval… Que seja, vocês entenderam. Neste caso específico, os adultos heterossexuais queriam alguém para curtir o carnaval juntos, então formaram um casal fortuito.
Encontraram-se na sexta-feira de carnaval num barzinho bem popular que estava naquele dia quase vazio. Todos deviam estar em algum bloco ou já haviam viajando para algum lugar animado. O casal pediu uma cerveja e conversaram sobre onde iam pular carnaval nas regiões próximas à Vitória, enquanto já iam ficando à vontade um com o outro, trocando beijos e enrolamento das pernas… Ela queria ir para Centro de Vitória curtir os blocos tradicionais da cidade. Ele queria ir para Manguinhos encontrar dois casais de amigos. Rapidamente decidiram que no sábado iriam a Manguinhos e no domingo para o Centro de Vitória.
No sábado pela manhã, fizeram suas mochilas com o suficiente para passar a noite em Manguinhos já que iriam de carro e não poderiam dirigir após beber. O homem colocou seu chapéu coco, pegou seus dois travesseiros (sem os quais não conseguia dormir) e até o ventilador foi junto, pois o calor estava infernal. Todos os cantos da Grande Vitória estavam lotados de carros policiais em operação “Se beber, não dirija”, quer dizer, se algum deles fosse pego na operação estava muito ferrado. Só não sabiam onde passariam a noite… A esperança era encontrar um casal amigo que os convidasse para ficar em sua casa.
Manguinhos, naquele sábado, estava perfeita para um bom carnaval. Tinha muita gente, mas era possível circular e o bloco tradicional que se finalizava com o banho de mar já havia passado. Encontraram um casal amigo que tinha um pouco mais de idade que eles. Gente muito bacana. No palco, um músico muito bom tocava músicas clássicas do carnaval brasileiro. Então, beberam, tomaram banho de mar e dançaram ao som de boa música. Quando começou a escurecer e Manguinhos começou a lotar de pessoas, o casal amigo lhes informou que iria embora, pois a partir dali, já era demais para eles. Bom, o casal fortuito também pensava o mesmo e disse que os acompanharia, pois havia estacionado o carro perto da casa deles. No caminho, o casal mais velho, perguntou como iriam voltar a Vitória depois de beberem, já que havia polícia nas saídas de Manguinhos fazendo bafômetro. O casal fortuito, meio se fazendo de desentendido, disse que não sabia ainda o que faria, tinha até pensado em procurar um lugar para passar a noite. Logo, o casal mais velho, muito cordial, os convidou para passar a noite na casa deles. Se olharam de forma cúmplice e, muito aliviados, aceitaram imediatamente. O apartamento do casal tinha uma vista espetacular para o mar. A mulher, ao ver a paisagem, animada disse ao homem que não iria embora no dia seguinte antes de dar uma caída naquele mar que podia ver dali pela janela. O homem, com cara de muxoxo, diz que no dia seguinte eles decidiriam isso. Acordaram, se arrumaram, se despediram e agradeceram muito ao casal que os acolheu e partiram. A mulher lembrou ao seu companheiro fortuito que queria tomar um banho de mar, ali, em frente ao prédio dos amigos. O homem, meio com má vontade, para em frente à praia e diz para ela ter cuidado, porque ali tinha muita pedra no fundo do mar. A mulher se deliciou com o frescor da água naquela manhã que já se encontrava muito quente. O mar estava calmo, maré baixa, muitas algas marinhas, mas com um azul esplendoroso.
Dali, seguiram para o Centro de Vitória, onde curtiram os blocos da manhã de domingo. Tudo ótimo! À tarde ficou meio estranha no centro, pois não tinha nenhum bloco, então, procuraram um barzinho para beberem mais e conversarem para se conhecerem um pouco mais. A conversa não poderia acontecer sem troca de carícias e beijos. Aos poucos, perceberam que o centro começou a se encher de pessoas de modo frenético. Na lotação que ia acontecendo, podia se ver muitos casais gays. O homem começou a se incomodar e falar coisas um pouco grosseiras na visão da mulher:
– Tá ficando meio sujo aqui, olha para isso!
– Qual é o problema? O que você tem a ver com as partes íntimas (bom, ela não disse com essas palavras, mas vamos poupar o público leitor) dos outros?
– Nada, não tenho problema nenhum, é até bom porque sobra mais mulher para mim.
– Ah, bom, assim fica melhor… (falou a mulher cinicamente).
– É por isso que não gosto do Centro, só tem petista.
– Não entendi… O que uma coisa tem a ver com a outra? E qual o problema de ter petistas?
– Eu odeio petistas! Odeio esse Lula!
– Mas, por que isso? – Porque odeio, são todos vagabundos! Esse Lula é um ladrão!
– Calma, vou voltar a perguntar, por que odeia petistas, por que acredita que são todos vagabundos, por que acha que Lula é ladrão?
– Vamos trocar de assunto, vamos ver as mulheres bonitas do carnaval.
– Não, só estou perguntando porquê. Não pode me dar uma resposta?
– Olha, eu ODEIO petistas, eu ODEIO Lula.
– Sim, já me disse isso e eu estou perguntando, por que você odeia petistas? Quem é petista para você?
– Esse bando de vagabundos, aqui parece que só tem petistas, negros, gays, gente esquisita, odeio esses vagabundos.
– Percebe que está me ofendendo, eu estou aqui, te convidei para vir para cá, tenho muitos amigos aqui. Você acha que sou vagabunda?
– Vamos parar de falar disso e tomar mais uma para irmos embora que está lotando demais e só tem gente feia aqui. – Por que você odeia petistas?
– Só odeio.
– Você não tem um motivo, um argumento qualquer para me explicar?
– Não! – Você me ofendeu. Eu sou petista, estou com você desde ontem e até este momento não parecia me odiar. Agora, você não é capaz de elaborar um argumento plausível, factível para o seu ódio aos petistas? Se você não me der um argumento agora, você vai voltar de Uber para casa.
– Para com isso… É besteira… Os petistas não prestam, mas é isso. Não tem o que discutir.
– Última chance: por que odeia os petistas?
Silêncio. O homem leva o copo à boca, toma uma golada de cerveja e desvia o olhar da mulher que estava a todo o tempo da conversa encarando diretamente o homem. Este, que o tempo inteiro buscava desviar o olhar da mulher e de sua pergunta. A mulher levanta, vai até o balcão do bar, pergunta quanto deu a conta e a paga inteira. Depois, caminha decididamente até o carro, que era seu, abre o porta-malas, coloca a mochila do homem nas costas, insovaca seus dois travesseiros, coloca o chapéu coco na cabeça e segura com a outra mão o ventilador. Caminha de volta até o homem que a olha completamente transtornado:
– Você enlouqueceu, mulher?! Como pega minhas coisas assim? Tem muita gente aqui, onde vai colocar isso?
A mulher tira o chapéu coco, coloca delicadamente na cabeça do homem, tira os travesseiros de debaixo do braço, coloca-os encima da cadeira onde ela estava sentada, depois coloca a mochila encima dos travesseiros fazendo um pequeno amontoado que podia desmoronar a qualquer momento e, por fim, coloca o ventilador no chão, ao lado do homem.
– Suas coisas estão aí. Precisa que eu peça um Uber para você?
– Não! Você ficou louca? Não pode deixar minhas coisas assim aqui. Eu vou embora com você
– Rsrs, comigo não. Tchau!
Doutora Gilead Marchezi Tavares – Professora Titular do Departamento de Psicologia da UFES
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