Este trabalho, baseado em 25 anos de experiência em perícia financeira, mostra como a aparente neutralidade matemática usada pelos bancos pode esconder práticas abusivas contra o consumidor. A análise parte de um caso concreto de financiamento imobiliário em Vila Velha (ES), no qual a taxa anunciada era de 4,07% ao ano, mas a cobrança real correspondia a 6,07% ao ano. Essa diferença, ao longo do contrato, representou um custo extra de mais de R$ 55 mil para o cliente.
Práticas como essa comprometem a função social do crédito, sufocam o consumo e impedem o crescimento econômico.
1 | Introdução
A economia permite medir como funciona a sociedade através da forma como o dinheiro circula. A política, embora importante, aparece aqui apenas como pano de fundo. O que está em jogo é a maneira como grandes instituições financeiras transformam cálculos matemáticos em artifícios para aumentar seus lucros.
O estudo analisa um contrato de financiamento imobiliário comum, em que os bancos utilizam a chamada Tabela Price para calcular as parcelas. À primeira vista, trata-se apenas de uma fórmula matemática, mas, na prática, ela pode esconder cobranças indevidas. O resultado é preocupante: o consumidor paga mais do que deveria e se torna vítima de uma espécie de fraude.
2 | O crédito como engrenagem e como entrave
O crédito tem papel central no capitalismo: permite que pessoas e empresas façam investimentos mesmo sem ter todo o dinheiro em mãos. Quando funciona corretamente, amplia a capacidade de produção e gera crescimento.
No entanto, quando a intermediação financeira é usada de forma desonesta — com juros escondidos, renegociações pouco transparentes e manipulação das taxas — o crédito deixa de ser solução e passa a ser problema. Em vez de estimular a economia, ele sufoca a produção e desanima investimentos.
3 | Estudo de caso: contrato de 228 meses
O caso analisado envolveu um financiamento imobiliário com as seguintes condições:
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Valor financiado: R$ 300.000,00
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Despesas adicionais: R$ 32.500,00
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Total financiado: R$ 332.500,00
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Prazo: 228 meses (19 anos)
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Taxa anunciada: 4,07% ao ano
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Sistema de amortização: Tabela Price
De acordo com os cálculos previstos pelo próprio contrato, a parcela mensal deveria ser de aproximadamente R$ 2.084,34. Mas o valor efetivamente cobrado foi de R$ 2.429,77 — uma diferença de R$ 345,43 todo mês.
Logo de início, percebe-se que há algo errado. A cobrança foi maior do que o valor que deveria ter sido aplicado segundo as condições declaradas. Isso já levanta a suspeita de fraude.
4 | A taxa efetivamente cobrada
Para que a parcela cobrada (R$ 2.429,77) fizesse sentido dentro do prazo e do valor financiado, a taxa de juros real não poderia ser 4,07% ao ano, mas sim 6,07% ao ano.
Na prática, o banco apresentou uma taxa mais baixa no contrato, mas aplicou uma mais alta ao calcular as parcelas. Essa diferença de 2 pontos percentuais, mantida ao longo de 19 anos, significou um ganho extra gigantesco para a instituição.
5 | O custo oculto
Quando se calcula o impacto dessa diferença de parcelas ao longo de todo o contrato, chega-se a um valor adicional de aproximadamente R$ 55 mil.
Esse montante representa um dinheiro que o consumidor pagou, mas que não estava previsto de forma clara no contrato. Em outras palavras, é um custo oculto que não foi informado de maneira transparente ao cliente.
6 | Da progressão à perversão
O problema não está apenas nos números, mas no efeito de longo prazo.
Os juros compostos — aqueles que se acumulam mês a mês — já são pesados em financiamentos longos. Mas quando os bancos manipulam taxas de forma opaca, esse efeito se transforma em algo ainda mais grave: uma perversão geométrica, em que os ganhos da instituição crescem de forma exagerada e injusta.
Esse tipo de prática viola o princípio da informação simétrica, que significa que ambas as partes de um contrato deveriam ter clareza total sobre as condições. Sem isso, o consumidor fica em desvantagem e é explorado.
7 | Conclusão
O crédito é essencial para o funcionamento da economia moderna. Ele deveria ser um instrumento para estimular o consumo e o investimento, e não um mecanismo de exploração.
O caso analisado prova que a diferença entre um financiamento justo e um abusivo pode estar em detalhes quase invisíveis para o consumidor, como a “quarta casa decimal” da taxa de juros. No entanto, esses detalhes escondem milhares de reais em cobranças indevidas.
Se os bancos escolhem a opacidade e o ganho desmedido, o resultado é desastroso: o consumo é freado, os investimentos são desestimulados e o crescimento econômico é sufocado.
Em resumo, enquanto prevalecerem tais práticas, não há santidade no sistema bancário brasileiro.
Texto baseado no artigo de Vaner Corrêa Simões Junior – Economista graduado pela UFES e Pós-Graduado pela UVV.
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